segunda-feira, 11 de março de 2013

“… ESTA DESGRAÇADA CIDADE DE LISBOA”



Um dia, teria já ultrapassado os setenta anos de idade, Torga dispôs-se a ler as aventuras de Júlio Verne. Faz-nos esta confidência em princípios de 1983 num dos seus diários. Todavia, apressou-se a dizer, sobre o humorista da imagem, como gostava de apelidar o grande escritor francês, que se este não lhe tinha povoado de aventuras a infância, obrigada a contentar-se com as histórias da senhora Maria Ambrósia, tinha enriquecido de franca alegria algumas horas da sua velhice. Vem isto a propósito de Giacomo Casanova, o aventureiro - perdoe-me Dr. Mega Ferreira o ligeiro epíteto que prodigalizo ao Veneziano -, que um dia desembarcou em Lisboa com insondáveis incumbências e por cá andou durante uma meia dúzia de semanas, afortunadamente livres nas suas memórias, até que o secretário Sebastião de Carvalho, irritado pela descoberta da sua rocambolesca fuga das prisões do Doge, lhe deu vinte e quatro horas para deixar o reino. Casanova, sei-o agora, foi muito mais do que aquele marialva, imagem que a história, ciosamente, dele guardou. Eu, que como o poeta, preenchi a infância e a juventude com outros negócios que talvez me tenham estreitado a visão, prometo, a partir de agora, olhar, também, para fora da alcova do Veneziano.
Num certo olhar, o livro “Cartas de Casanova, Lisboa 1757”, parece ser um cru relato da situação vivida no país durante um dos mais negros momentos da sua história: o terramoto de 1755. Casanova, que se evadiu da prisão na madrugada de 1 de novembro de 1756, precisamente um ano após o grande sismo, para se refugiar em Munique, quando desembarcou em Lisboa, passados que eram cerca de dois anos após o desastre, ficou horrorizado com a visão da tragédia que tinha atingido «esta desgraçada cidade de Lisboa». Pouco depois da chegada, em carta enviada ao irmão, confidenciaria que «mal podia imaginar, naquela noite de novembro de 1755 em que as paredes tremeram na prisão de Veneza e […] por momentos desejara que o abalo acabasse por derrubar as barreiras que [o] separavam da […] tão desejada liberdade, a extensão horrorosa da catástrofe…». Durante as seis semanas que por cá permaneceu, Casanova, vai contando, nas seis cartas que enviou a cinco destinatários diferentes, as impressões que vai colhendo. Ora sobre a tragédia: «o que se apresentava aos meus olhos era, em muitos aspectos, muito mais horroroso do que as minhas piores conjecturas permitiam imaginar», ora sobre a extrema religiosidade que coava as luzes que iam iluminando essa Europa, atribuindo o bem e o mal aos insondáveis desígnios do senhor e deixando que «as coisas tomem o seu curso normal segundo a vontade divina que é rápida a castigar e lenta a conceder o perdão». Impressionou-se com as desigualdades chocantes sempre que testemunhava as autênticas paradas de elegância, «que bem podia sugerir estarmos nas imediações de Fontainebleau, não se desse o caso de a ostentação proporcionada pelo quadro […] ser tingida pelas legiões de mendigos e estropiados […] à procura de uma esmola que lhes salvasse o dia». Pelo meio vai perorando sobre a qualidade dos nobres portugueses «de pouco mundo e nenhumas luzes» que acha incultos, rudes, supersticiosos e desconfiados, vivendo para as montarias, o jogo e as touradas, e ainda arranjou tempo para verificar a boa saúde das filhas mais novas do banqueiro Teixeira, separadas pelo sismo, testemunhar a exclusiva encenação da corte na grade do convento de S. Dinis em Odivelas onde «metade dos marqueses condes e barões» cortejam «as filhas segundas de todas as casas nobres, as suas primas, as suas irmãs, as suas amigas» e, como director da lotaria de Paris, chegar à fala com o «sedentário ministro» Sebastião de Carvalho.
Casanova, viajante incansável, foi um apetrechado escritor: “Histoire de ma vie”, uma obra de fôlego em doze volumes, aí está para o provar. Privou com as mais reputadas figuras europeias do século XVIII. Frequentou os círculos eruditos da época e deu largas à sua paixão pelo jogo. Foi, ao que parece, um violinista mais que aceitável, note-se que foi nessa qualidade que logrou «vencer a barreira até então intransponível do poderoso mosteiro» de Odivelas onde se inteirou da sorte das filhas mais velhas do banqueiro Teixeira. Foi isto tudo mas é da sua faceta de sedutor que a história dele guardou as mais abundantes evidências. Não se pense, no entanto, que neste particular a história lhe foi lisonjeira: não senhor; ele fez por merecê-lo. Pela sua pena, ficamos a conhecer o desenlace de algumas das suas empresas que, durante a breve estadia entre nós, levou a cabo. Nas cartas que escreve vai entremeando o relato formal do andamento das incumbências que cá o trouxeram com novas mais mundanas. Na primeira carta, conta à Condessa Coronini que não conseguiu ficar indiferente à presença de uma jovem de longos cabelos louros apanhados à francesa e olhos castanhos como avelãs brilhando por detrás de longas pestanas. Na segunda, descreve ao irmão, a viagem de Marselha até Lisboa por mar e a instalação na hospedaria. Conta-lhe que a criada, que não teria mais de quinze anos e era de compleição agradável, apressou-se a trazer uma selha para o banho e duas ou três vasilhas com água quente. Depois, com muito cuidado, tirou-lhe o barrete que usara na viagem, e que estava praticamente inutilizado, e ajudou-o a despir-se. «Fosse o à-vontade da rapariga, ou porque a água quente viesse restaurar os bons humores na minha circulação, o meu corpo deu sinais exuberantes de ter regressado à vida», disse. Na terceira carta, endereçada a uma misteriosa freira que se pensa ter sido Marina Maria Morosini, começa por relembrar «esse ano memorável em que nos tornámos amigos e amantes» para terminar contando-lhe as aventuras na quinta de Madalena Fróis, prima de Correia Garção - que Casanova, nunca escondendo a aversão que o poeta lhe causava, tratava por Garçon -, ensinando à sua filha, Clara, «uma adorável vestal de catorze anos […] que os olhos não podiam cansar-se de admirar, […] tudo o que possa despertar nela o gosto pelos prazeres da vida». Para terminar, na sexta carta, conta ao senhor de Bernis, ministro de Luís XV, a partida apressada deste reino de Portugal, num reluzente coche de oito molas, na companhia da bela sevilhana Inês de Cantillana, afastando-se, avisadamente, do longo braço do ministro Carvalho, «o homem mais poderoso de Portugal». E só não transmitiu novas mais da sua condição na quinta carta porque o seu génio impulsivo e destemperado o traiu e na quarta, absorvido que estava a contar a Matteo Bragadin, senador da República de Veneza, o minucioso trabalho de aproximação à corte do rei José e do seu todo-poderoso ministro Sebastião de Carvalho.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

À conversa com... António Mega Ferreira

Dia 15 de Março, às 21.30 horas, na Sala Couto Viana da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, vamos estar À conversa com...  António Mega Ferreira, a propósito do livro "Cartas de Casanova - Lisboa 1757".



O Autor
 

Escritor, gestor e jornalista, nasceu em Lisboa, em 1949. Foi jornalista no Expresso, RTP2, O Jornal e JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias. Fundou as revistas  Ler e Oceanos. Chefiou a candidatura de Lisboa à Expo'98 e foi comissário executivo da exposição mundial. Foi presidente da Parque Expo, do Oceanário de Lisboa e da Atlântico, Pavilhão Multiusos. De 2006 a 2012,foi presidente da Fundação Centro Cultural de Belém. Tem cerca de três dezenas de títulos publicados, entre ficção, poesia, ensaio e crónica. Em 2002, recebeu o Grande Prémio Camilo Castelo Branco pela recolha de contos A expressão dos afectos. Traduziu livros de Annie Kriegel, Mishima, Cendrars, Stendhal, Unamuno e Perec. Na Sextante Editora publicou A blusa romena, Lisboa Song, Roma Exercícios de reconhecimento e, mais recentemente, Macedo - Uma biografia da infâmia.
 
 
O Livro
No verão de 1757, o aventureiro Giacomo Casanova, que se evadira pouco antes da prisão dos Piombi, em Veneza, desembarca em Lisboa. O espetáculo das ruínas provocadas pelo terramoto ultrapassa tudo aquilo que ele podia imaginar. Durante seis semanas, Casanova faz os possíveis por entender os portugueses: como é possível que a vida dos habitantes da cidade se tenha acomodado a uma tal desorganização? Conhece o comerciante Ratton e o conde de S. Lourenço, o livreiro Reycend e o marquês de Alegrete, o poeta Correia Garção e a condessa de Pombeiro. E até se encontra com o misterioso marquês de X. Chega finalmente à fala com Sebastião José de Carvalho e Melo, ainda não Oeiras, ainda não Pombal, a quem tenta vender o projeto de uma lotaria real. Exaspera-se e diverte-se, seduz e perde ao jogo, e encontra tempo para escrever seis cartas a cinco personagens importantes da sua vida. «Rien ne pourra faire que je ne me sois amusé» é a divisa que o guia. Mesmo em Lisboa. Mesmo depois do Grande Terramoto.
 
 




segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

À conversa com... Inês Pedrosa

Dia 25 de Janeiro, às 21.30 horas, na Sala Couto Viana da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, vamos conversar com... Inês Pedrosa, a propósito do livro "Dentro de ti ver o mar".




A Autora
 
Inês Pedrosa (n. 1962) é licenciada em Comunicação Social pela Universidade Nova de Lisboa. Trabalhou em vários jornais ("O Jornal", "JL", "O Independente", "Expresso") e revistas ("Marie Claire", de que foi directora durante 3 anos e "Ler"). O seu primeiro romance, "A instrução dos amantes", foi publicado em 1992, e nele traçava as estratégias da vida adulta sobre um microcosmos de adolescentes suburbanos. Cinco anos mais tarde surgiu "Nas tuas mãos", onde a autora nos leva a imaginar o Portugal das últimas décadas, através das emoções das três protagonistas, três mulheres (avó, mãe e filha) que cruzam destinos e memórias que atravessam o século XX. Outras obras publicadas: “Fazes-me falta” (2002); “A menina que roubava gargalhadas” (2002); “Fica comigo esta noite”, contos (2003); “Carta a uma amiga”, com Maria Irene Crespo (2005); “Do grande e do pequeno amor”, com Jorge Colombo (2006); “A eternidade e o desejo” (2007); “Os íntimos” (2010).
Publicou ainda uma magnífica "Fotobiografia de José Cardoso Pires", e os livros "20 Mulheres para o Século XX" e "Poemas de Amor (antologia de poesia portuguesa)", que seleccionou, organizou e prefaciou, ambos editados por Publicações D. Quixote; “Anos Luz: trinta conversas para celebrar o 25 de Abril” (2004); “Crónica Feminina” (2005); e “No coração do Brasil – seis cartas de viagem ao padre António Vieira” (2008).
 
“Dentro de ti ver o mar”  é o seu mais recente romance.

 
O Livro

Dentro de ti ver o mar. A frase era dele, e dissera-a sem sequer gaguejar. Dentro dela Gabriel perdia completamente a gaguez. A frase era dele e agora Rosa esperava que viesse reivindicar-lha. Era esse o seu engenho emancipatório. Dessa frase que não lhe pertencia surgira uma letra de fado e o sucesso da fadista, numa Lisboa saturada de novos heróis do fado. Procissões de artistas despontavam diariamente para o anonimato. O fracasso subia-lhes à cabeça.

A vida da fadista Rosa, que procura o pai que nunca conheceu, cruza-se com a de Farimah, que escapa ao fado desenhado pelo pai, e com a de Luísa, que não teve mãe e ofereceu a filha. A história de três mulheres desobedientes e de como cada uma delas encontra a sua própria voz.

 

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

ENQUANTO O PRÓXIMO CONVIDADO NÃO CHEGA


«Desenhámos com um graveto na areia molhada a viagem de Ulisses: navegara pelo Mediterrâneo, ultrapassando o Estreito de Gibraltar (Colunas de Hércules, diziam os antigos), contornando um pedaço do sul da Ibéria, passando pelo que depois seria o Algarve. Subiria ao longo da costa, talvez aportasse no que depois seria Alcácer do Sal ou logo a seguir no porto de Setúbal, chegaria a Lisboa, entraria a barra, subiria o rio desde a foz até ao Mar da Palha, onde o rio ainda salgado se espraia como um pequeno mar interior, que lhe lembraria o Mediterrâneo. E antes ou depois (mas provavelmente antes) de dar a esse lugar aprazível o seu nome, Ulisseum, teria navegado diante de Setúbal até Tróia, que então, na ausência do posterior assoreamento, ainda seria uma ilha.»
Enquanto o próximo convidado não chega folheemos de novo “A Cidade de Ulisses”. O último livro de Teolinda Gersão é, também, um livro de viagens, um livro de muitas viagens. Das viagens de Ulisses da guerra de Tróia ao regresso a Ítaca, das viagens de «um pequeno país de 89 mil quilómetros quadrados [que] colocou padrões de pedra, símbolo da sua presença e do seu domínio, numa área vastíssima do planeta […] do Atlântico ao Índico e ao Pacífico» e que malbaratou uma e outra vez as riquezas incomensuráveis que ia obtendo e é também uma viagem por Lisboa pela Ulisseum de Ulisses, «transformada depois em Olisipo através de uma etimologia improvável.» Uma viagem não de turista, uma viagem de viajante porque «o turista vai à procura de lugares para fugir de si próprio, da rotina, do stress, da infelicidade, do tédio, da velhice, da morte. Vê os lugares onde chega apenas de relance e não fica a conhecer nenhum, porque logo os troca por outros e foge para mais longe. O viajante vai à procura de si, noutros lugares que fica a conhecer profundamente porque nenhum esforço lhe parece demasiado e nenhum passo excessivo, tão grande é o desejo de se encontrar. As agências de viagens e os turistas só se interessam, obviamente, pelas cidades reais. Os viajantes referem as cidades imaginadas. Com sorte, conseguem encontrá-las. Ao menos uma vez na vida.»
Enquanto o próximo convidado não chega, dizia, deliciemo-nos com esta outra maravilhosa viagem por Lisboa.