Alphonse Daudet, Cartas do Meu Moinho
Ludovica Fernandes, que haveria de delapidar o grosso de uma farta biblioteca, colmatando com os livros a eletricidade e o gás que lhe iam chegando aos repelões, nunca terá conseguido separar-se das cartas de Daudet. Quando a promessa de um novo dia, mal tinha ainda abandonado as águas cálidas do Índico, imagino-a a subir as escadas de caracol agarrada ao seu tesouro. No terraço, enquanto deixava que a vista se espraiasse pelo mundo hostil que a cercava, abria o livro na história de Blanquette, a bela cabrinha de sedosa pelagem branca que amava a liberdade, e então, começava a ler. Apesar de ter uma bela vida na quinta do senhor Seguin, no verdejante vale do Ródano, Blanquette olhava o horizonte e sentia o apelo das montanhas distantes. Uma manhã, apesar dos esforços em contrário do dono, Blanquette fugiu. Durante todo o dia andou alegre, correndo pela montanha, guiada pelo instinto, inebriada pelos mil cheiros e sabores das plantas que nunca tinha visto. Ao cair da noite a cabrinha pressente o perigo. Podia ainda regressar à segurança da quinta mas lembrando-se que voltaria a ser amarrada ao poste, atira para longe esse pensamento, vira-se e enfrenta corajosamente o lobo. Lutará com ele toda a noite mas ao alvorecer o lobo lançar-se-á, finalmente, sobre ela e comê-la-á. Imagino Ludovica a ler uma e outra vez a aventura épica de Blanquette, admirando-lhe a coragem. Muitos anos depois, quando a vista lhe começou a pregar partidas e nem a mais potente lupa lhe conseguia desenredar o emaranhado nebuloso das letras, Ludovica haveria de ensinar o pequeno Sabalu a ler. Imagino-os sentados no terraço do prédio dos invejados, debaixo do céu de chumbo de Luanda. O órfão contava à velha senhora a história da sua vida: sabe avó, a minha mãe me morreu quando eu era criança. […] Converso com ela, mas me faltam as mãos com que me protegia. A velha senhora, condoída, abraçava, então, o petiz. E assim, aninhado na segurança do colo da anciã, começava a ler: Hás-de ser sempre o mesmo meu pobre Gringoire!...
Teoria Geral do Esquecimento, o último livro de José Eduardo Agualusa fala-nos de um tempo de ódios e vinganças. Fala-nos dos anos de chumbo dos alvores da nação Angolana. Fala-nos de um tempo em que, para preservar a revolução socialista se permitiriam, utilizando um eufemismo grato aos agentes da polícia política, certos excessos. É para fugir a este clima que a aterroriza que Ludovica Fernandes ergueu uma parede que a separou do mundo. Assim emparedada viverá por mais de vinte anos até que Sabalu, com meia dúzia de violentas pancadas de picareta, abriu um buraco na parede. E a velha senhora que recebia as notícias do mundo coadas pelo discernimento estreito do jovem órfão que um dia lhe entrou em casa com o intuito de roubar, pôde então perceber que o tempo era outro. Os angolanos já não se matavam uns aos outros como cães raivosos. Estavam a chegar generais e ministros, pessoas com dinheiro para comprar prédios elegantes e passados imaculados.
Hoje, felizmente, a guerra já não atormenta a nação angolana. Como alguém dizia, a maldade também precisa descansar. Pena que nem todos consigam fazer o exercício do Pequeno Soba. Ele que fugiu da cadeia num caixão e teve direito a um funeral improvisado, ganhou o hábito de se visitar no dia da sua suposta morte, levando flores para si mesmo. Diante da sua campa reflete sobre a fragilidade da vida e pensa em si mesmo como num parente próximo. Pesa as qualidades e os defeitos e no merecimento das suas lágrimas. E então, quase sempre, Pequeno Soba chora um pouco. Que lágrimas brotariam outros se tivessem também a capacidade de se visitarem na campa?
Parabéns pela continuação do romance, simplesmente brilhante
ResponderEliminarZé Nora
Gostei imenso do teu texto. Merecia ser lido na sessão. É uma pena seres tão modesto nas tuas intervenções quando a audiência é maior. Continua a comentar, ainda que seja só para alguns que, como nós, temos o prazer de te ler e de te ouvir às 6º Feiras.
ResponderEliminarUm grande abraço da Isabel.
Zé Nora, Isabel, ainda que não mereça tamanhos panegíricos, agradeço-vos de todo o coração.
ResponderEliminarGostava de escrever assim!
Eliminartambém ja devorei o livro e adorei
até 6ª
Elia
Caro Carlos Ponte,
ResponderEliminarGostei bastante do texto e,tal como sugere a Isabel, pergunto se está disponível para o ler para o público presente na sessão com o escritor (apesar dele já o conhecer através deste blogue).
rui
Olá Carlos
ResponderEliminarConsidero, como todos os que comentaram, um texto excelente e uma muito pertinente reflexão sobre o livro.
Tal como o Director da Biblioteca sugere, penso que devia ser lido na sessão pública da próxima sexta-feira.
Um abraço.
bento