HOMENAGEM
josé bento
1951—2014
clube de leitura da biblioteca municipal de viana do castelo
na hora de pôr a mesa, éramos cinco: o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs e eu. depois, a minha irmã mais velha casou-se. depois, a minha irmã mais nova casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje, na hora de pôr a mesa, somos cinco, menos a minha irmã mais velha que está na casa dela, menos a minha irmã mais nova que está na casa dela, menos o meu pai, menos a minha mãe viúva. cada um deles é um lugar vazio nesta mesa onde como sozinho. mas irão estar sempre aqui. na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco. enquanto um de nós estiver vivo, seremos sempre cinco.
In josé luís peixoto, «a casa em ruínas
À VOLTA DA MESA SEREMOS SEMPRE DEZOITO
Todos os anos, entrando março, o clube afadiga-se na planificação do aniversário. Os dezoito sentam-se à roda da mesa e toca de esgrimir argumentos. Duas condições apenas: o programa deve apaziguar o espírito e alimentar o corpo.
Vista de fora, por um observador menos atento, a reunião não será muito diferente daquela segunda assembleia dos principais comandantes rebeldes do Coronel Aureliano Buendía: «… idealistas, ambiciosos, aventureiros, gente com ressentimentos sociais e delinquentes comuns. Havia até um antigo funcionário conservador que se asilara na revolta para fugir ao julgamento por desvio de fundos. Muitos nem sabiam por que lutavam». Mas não, embora, como os homens do Coronel Aureliano, o clube seja também uma multidão matizada, as diferenças de opinião jamais ficarão perto de provocar uma explosão interna.
Vista de fora, por um observador menos atento, a reunião não será muito diferente daquela segunda assembleia dos principais comandantes rebeldes do Coronel Aureliano Buendía: «… idealistas, ambiciosos, aventureiros, gente com ressentimentos sociais e delinquentes comuns. Havia até um antigo funcionário conservador que se asilara na revolta para fugir ao julgamento por desvio de fundos. Muitos nem sabiam por que lutavam». Mas não, embora, como os homens do Coronel Aureliano, o clube seja também uma multidão matizada, as diferenças de opinião jamais ficarão perto de provocar uma explosão interna.
Subtraindo a sugestão do sonhador que todos os anos acha que devemos partir para o sul a calcorrear a Patagónia, seguindo os passos de Chatwin, não já para fugir às bombas de cobalto de Estaline, mas em demanda do milodonte e do nostálgico, confundindo John Reed com Warren Beatty, que não senhor, o clube devia era embarcar em Petrogrado, assim mesmo, em Petrogrado, e seguir pelas estepes infindáveis até o mar do Japão nos cortar a marcha. Pelo caminho, na aridez da paisagem da Ásia profunda, havíamos de encontrar resquícios bolcheviques de dezassete que ainda por lá, com certeza, os haverá.
Mas é dos sonhos dos outros, de geografias bem mais modestas, que, invariavelmente, se elege o destino.
Uma vez eleito, o "esgotante" trabalho da assembleia chega ao fim. Agora é hora de se traçar o plano de pormenor: de se eleger a ermida em desfavor da catedral, de se escolher o postigo em vez da porta monumental, de se privilegiar a anta esquecendo o mausoléu, de se preterir o Sauvignon em favor do Antão Vaz de colheita serôdia… e no fim, o Bento, porque isto era sempre trabalho do Bento, joeirado o plano, explica-o ao clube, como explicaria aos seus alunos, com um terno pitagórico, a irrepreensível perpendicularidade dos lados de um triângulo. Foi com ele que admiramos as fachadas
Mas é dos sonhos dos outros, de geografias bem mais modestas, que, invariavelmente, se elege o destino.
Uma vez eleito, o "esgotante" trabalho da assembleia chega ao fim. Agora é hora de se traçar o plano de pormenor: de se eleger a ermida em desfavor da catedral, de se escolher o postigo em vez da porta monumental, de se privilegiar a anta esquecendo o mausoléu, de se preterir o Sauvignon em favor do Antão Vaz de colheita serôdia… e no fim, o Bento, porque isto era sempre trabalho do Bento, joeirado o plano, explica-o ao clube, como explicaria aos seus alunos, com um terno pitagórico, a irrepreensível perpendicularidade dos lados de um triângulo. Foi com ele que admiramos as fachadas
furta-cores da Ágata Ruiz de La Prada no Bairro da Conceição e a notável tecnologia que permitirá ainda a muitas gerações de turistas admirar a soberba construção das casinhas oitocentistas da Praça de Santiago. Foi com o Bento que visitamos a austera alfândega régia que el rei D. João II, o príncipe perfeito, para acautelar os negócios da coroa, mandou erigir em Vila do Conde e, a bordo da caravela Bartolomeu Dias, homenageamos os marinheiros da prodigiosa aventura de quinhentos e foi com o Bento, na casa do Régio, que tomamos conhecimento da peculiar coleção de crucifixos do poeta.
Quando março chegar, rumaremos à Galiza. À Galiza de Rosalía: «Galiza florida, / Qual ela não há: / De flores coberta / Coberta d’espumas». Lá chegados, havemos de procurar as meninas de pedra que brincam ao arco, perpetuamente, numa pracinha de Pontevedra e havemos de espreitar a tertúlia do Café Moderno: com sorte, talvez consigamos ouvir dos tertulianos, fartos vivas à República. Havemos de nos perder no emaranhado das ruas antigas e descansar na Praza de Ferraría à sombra do velho convento, aspirando o perfume das camélias. Depois rumaremos a norte. Atravessamos o Ulla e lá ao longe, veremos aparecer, sobre as águas calmas da ria de Arousa, qual jogo de batalha naval, o extenso quadriculado das plataformas dos mariscadores que nos acompanharão até Rianxo. Lá chegados iremos em peregrinação até à casa de Daniel Castelao, o poeta do Galeguismo que a Falange baniu para o ultramar. Alguém há-de ler o seu mais belo poema que a nossa Dulce Pontes canta maravilhosamente: «Están as nubes chorando / Por un amor que morreu / Están as ruas molladas / De tanto como Chovéu».
Quando março chegar, rumaremos à Galiza. À Galiza de Rosalía: «Galiza florida, / Qual ela não há: / De flores coberta / Coberta d’espumas». Lá chegados, havemos de procurar as meninas de pedra que brincam ao arco, perpetuamente, numa pracinha de Pontevedra e havemos de espreitar a tertúlia do Café Moderno: com sorte, talvez consigamos ouvir dos tertulianos, fartos vivas à República. Havemos de nos perder no emaranhado das ruas antigas e descansar na Praza de Ferraría à sombra do velho convento, aspirando o perfume das camélias. Depois rumaremos a norte. Atravessamos o Ulla e lá ao longe, veremos aparecer, sobre as águas calmas da ria de Arousa, qual jogo de batalha naval, o extenso quadriculado das plataformas dos mariscadores que nos acompanharão até Rianxo. Lá chegados iremos em peregrinação até à casa de Daniel Castelao, o poeta do Galeguismo que a Falange baniu para o ultramar. Alguém há-de ler o seu mais belo poema que a nossa Dulce Pontes canta maravilhosamente: «Están as nubes chorando / Por un amor que morreu / Están as ruas molladas / De tanto como Chovéu».
E quando a fome e o cansaço nos vencerem, sentámo-nos à mesa. Comeremos polvo, mexilhões, navalhas e batatas ao vapor. E no fim, os dezoito, porque à volta da mesa seremos sempre dezoito, de pé, com o melhor vinho ribeiro das fráguas galegas, brindaremos à amizade que nos une, à vida e aos livros.
carlos ponte, outubro de 2014
BIBLIOTECA MUNICIPAL DE VIANA DO CASTELO trinta e um de outubro de dois mil e catorze
clube de leitura da biblioteca municipal de viana do castelo
carlos ponte
cristina bastardo
élia baeta
fernando gomes
giseli jácome
glória lourenço
helena guerreiro
isabel campos
josé bento
josé manuel cristino
lurdes carreira
manuel alberto silva
manuel joão costa
maria do céu campos costa
maria josé nora
paulo correia
rita arantes
rui faria viana
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