Um dia, numa escola da cidade, um dos funcionários encontrou um desconhecido junto da cantina a olhar, apalermado, através das vidraças. Houve um tempo em que por cá se construíam escolas como o partido daquele saudoso político da nossa praça: «com paredes de vidro». Quanto ao partido, sempre duvidei da real diafaneidade dessas paredes, já quanto à escola, eu mesmo posso testemunhar, as paredes eram mesmo transparentes, de modo que o intruso podia ver tudo o que lá dentro se passava. O funcionário abordou o desconhecido informando-o que não podia permanecer ali. O homem encarou-o com olhar assombrado e, sem dar mostras de ter ouvido o que funcionário lhe tinha dito, começou a balbuciar que «não o conhecia». Referia-se ao filho: «Estou aqui a apreciar o comportamento dele e só tenho a dizer que não o conheço. Se não o tivesse visto e se me tivessem dito que ele fazia isto não teria acreditado». O filho divertia-se a fazer toda a sorte de patifarias que o pai jamais pensou um filho seu ser capaz de fazer. E, sem conseguir livrar-se daquele ar aterrado, concluiu: «ele em casa não é nada disto».
Lembrei-me deste episódio quando na última sexta feira ouvi o escritor J. Rentes de Carvalho na Biblioteca Municipal de Viana. Rentes de Carvalho que, mau grado ter nascido em Vila Nova de Gaia, vai para oitenta anos, gosta de reivindicar para si a posse de uma costela transmontana provando-o com complexos cálculos aritméticos, é um escritor consagrado na Holanda, onde vive há mais de meio século, mas quase desconhecido por cá, onde apenas há dois ou três anos a sua obra começou a ser realmente tratada como merece. Uma das suas primeiras obras editadas em Portugal, com quinze anos de atraso, diga-se, foi Tempo Contado. O livro é, na realidade, um diário onde, durante um ano inteirinho, entre 1994 e 1995 o escritor anota, religiosamente, “os casos do dia”. Foi com este livro que tomei conhecimento do autor. Lendo-o, sendo este um diário, comecei a criar o retrato do artista: um homem avinagrado e lúgubre, constantemente zangado, sem paciência, com pouco sentido de humor, enfim, um ser pouco menos que irascível. Ouvindo-o na Biblioteca senti-me como se teria sentido o pai na cantina da escola, observando horrorizado as tropelias do filho: não o conheço, ele em casa não é nada disto. A sala estava cheia e nunca por lá terá passado alguém que tivesse criado tal empatia com o público como ele. Talvez que como o poeta, Rentes de Carvalho seja um fingidor, aliás foi-o reconhecendo ao longo da sessão, o certo é que conseguiu estilhaçar a imagem que dele tinha começado a criar ao longo da leitura do Tempo Contado e de La Coca. Futuramente terei de ter mais cuidado com as entrelinhas do texto; talvez isso me livre destes embaraços.
Curiosamente, ele correspondeu à exata ideia que os livros tinham causado em mim.
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